Bom dia, pessoal. Como vocês estão? Sério, como vocês estão?
Tenho achado que um tempo fora-do-tempo assim pede um minuto para a gente se perceber… Sei que alguns estão ainda percebendo a si mesmos – empoeirados em meio a tanta urbanidade, desacostumados com o espaço para respirar. Pois respirem, olhem o sol na parede, façam o quanto precisarem de nada, se a avalanche da vida em casa deixar. Depois venham conversar.
Como vocês estão? O que têm lido, pensado, escrito? Por que vieram aqui?
Do lado de cá, tive uma semana estranha, que começou com um pânico leve e terminou apenas leve depois de uma dose intensiva de comunicação. E eu ia falar sobre isso, sobre como estamos precisando mais do que nunca de comunicação (não falo do “bom dia” no whatsapp, mas de uma turma inteira, por exemplo, conversando com o seu professor sobre o ritmo ideal para estudar enquanto o mundo desaba sobre suas cabeças), mas acho que não vou. É que eu preciso falar sobre outra coisa antes que ela escape de novo.
É sobre a minha dissertação. Minha pesquisa, sabe? Aquela boa e velha produção de duzentas páginas ou mais que me aguarda a alguns meses daqui.
Então. Nem comecei. Pra falar a verdade li o suficiente em um semestre para uns quatro anos de vida, mas não comecei a escrever porque não sei o quê. Não digo que não sei quais palavras usar ou quais sobrenomes citar, mas o quê: o foco, o recorte, minha pergunta-problema. Qual é?
Pois é. Era para ter feito esse mestrado há anos… Mas não fiz – adivinhem – porque não sabia o que pesquisar. Meu TCC foi aleatório, sobre educação (o curso era Jornalismo). Na pós, a monografia foi semi-aleatória (tinha a ver com cinema, que era com o que eu estava trabalhando, mas nada com Jornalismo também). Então, no ano passado, decidi que queria pesquisar ficção científica. Autoria feminina. E entrei finalmente no mestrado em Letras. Numa universidade cuja especialidade, vejam só, é lusofonia (em minha defesa, eu não sabia).
Admito que só entrei porque o curso não exigia um pré-projeto, o que me dava um tempo extra (além dos 8 anos desde que eu me formei) para alinhar as ideias e chegar numa pergunta. Que, quase um ano depois, continua sendo um problema.
É que eu deveria querer saber alguma coisa em particular… Mas minha vontade é descobrir de tudo um pouco – um panorama geral. Quero saber como a ficção científica chegou de lá até aqui, e onde estamos agora, e onde isso vai nos levar; mas pesquisa, é claro, não funciona assim. É preciso abrir mão, escolher, deixar todo um universo para pesquisar depois. Por isso é tão importante escolher o planeta certo para começar.
“Por que você quer estudar ficção científica?” tem sido uma pergunta problemática em si. Já chegaram a me perguntar, em plena sala-de-aula, se eu “realmente” gostava do gênero, porque por algum motivo aquilo soava inadequado. Ficção científica? Tipo, naves espaciais e arminhas a laser? Bem, sim, eu gosto do gênero. Mas não, eu não gosto de tudo no gênero – prefiro realidades alternativas às arminhas, nada contra. Agora por quê?
Acho que por causa do George Orwell. 1984 foi a primeira ficção científica que eu li e foi a melhor coisa que devorei até hoje (o filme com John Hurt me lembrou disso um dia desses). Depois veio Bradbury, Asimov, Philip K. Dick. Clarke veio depois, quando vi 2001 – Uma odisseia no espaço e fui correndo atrás da sua versão, que heregemente preferi. Demorei a conhecer a Ursula (K. Le Guin), e foi por acaso – uma capa curiosa numa feira de livros. Uma capa branca. Mal sabia o que aquilo significava, ou que eu acabaria relendo e enchendo de post-its, encantada que ficaria com a prosa daquela mulher. Mas tenho vergonha de dizer quantas outras mulheres eu li, ou tinha lido até um ano atrás… É preciso esforço para equilibrar.
Quis estudar as autoras, então, porque as personagens, todo mundo sabe. São esposas, vilãs, alienígenas, criaturas que existem desde o princípio do tempo para guiar o herói para o sucesso ou a perdição. Dizer que todos os clássicos do gênero são cegos ou hostis a elas é bater com alface num martelo velho e amassado. Eu queria algo que fizesse diferença. Iluminar suas vozes, sua escrita mesmo, parecia uma meta melhor.
Mais que vozes são essas, então? As de mulheres americanas, que questionaram a literatura-padrão da ciência-ficção no auge dos anos 60, como a Ursula, a Atwood e a senhora Octavia Butler? Ou aquelas, como a inglesa Mary Shelley, que inauguraram o próprio gênero literário que as excluiria num tempo em que sequer podiam votar? O que posso eu, branca e brasileira do distante 2020, votante e pós-graduada, acrescentar ao debate nessa arena das letras e das injustiças que tanto me falta conhecer?
Então lembrei do cinema… E dei um passo atrás. Um passo largo, sem elas, para onde eu conhecia. Prometi voltar à questão depois, no doutorado. E pensei nos filmes que me levaram aos livros, e nos livros que me levaram aos filmes, e finquei meus olhos em Blade Runner. Pensei em Dick, Scott e Villeneuve, pensei em autoria, masculina mesmo, e pensei em espaços. Espaços domésticos, cidades, ambientes místicos e virtuais, silêncios e vazios. Vazios empoeirados sustentando hologramas em neon. (Mulheres em neon, percebo agora.) Esses espaços denunciavam autorias, diziam mais sobre o seus tempos do que sobre as histórias que contavam. E fiquei confiante, porque eu conseguia ler esses espaços, e enxergar coisas que nem todo mundo sabia que estava ali.
E aquilo fez sentido, na hora. Mas será?
Sempre a dúvida. Sempre a pergunta. Para saber, talvez eu precise levantar os olhos. E olhar não para uma obra ou autor, mas para este tempo aqui. E pensar o sci-fi, o cinema, a literatura, elas e eles e todos nós, juntos nessa bagunça que é o século XXI. Onde estamos agora? E quem entende? Parece uma distopia, mas mais inverossímil. Parece um Nonsense, um New Weird, um restaurante no fim do universo ou uma meia-vida abastecida por Ubik. É um tempo de virtualidades vastas e realidades curtas, de vozes diversas e sobrepostas. Um tempo em que o homem-criador vem se revelando criatura frágil, e a dama-natureza está virando o jogo. São estereótipos do sci-fi esses, aliás, não sou eu que invento: o cientista é sempre ele; a natureza é sempre ela, a ser dominada, descoberta, invadida. Violada. Mary Shelley me ensinou.
Será o tempo de se deixar invadir? Não, não para mim. Pois lembro logo que não sou natureza; nem sou ele, o cientista; estou fora do jogo. Sou ela, entidade à parte, a alienígena, recém-incorporada à humanidade e à ciência. E à ficção. E à academia.
O que poderia ser tão relevante para mim quanto para o resto do mundo?