Mulheres não fazem poesia. A poesia meio que brota delas como mato descontrolado, invadindo o espaço inóspito feito bandeirante civilizador. Às mulheres, não cabe escolha senão aceitar, agradecer. Recitar tal qual caixa de som.
Mulheres fazem poesia, mas o jornal nesta manhã escolheu tirar delas o poder descomedido que acompanha o ato de criar. “Como a poesia está ajudando as mulheres do sertão mineiro a superar as dificuldades”, leu a apresentadora em tom sério, mas leve – esta é a matéria feel-good que fechará a sexta-feira. Na tela, mulheres cantavam palavras próprias diante da câmera de seus celulares, sotaque carregado e árvores ao fundo. Eu vi mulheres fazendo poesia em meio às adversidades. Quem quer que tenha escrito a chamada viu a poesia salvando mulheres.
Não culpo (totalmente) o autor ou autora por tão inocente engano. Ativos e passivos são intercambiados rotineiramente nas salas de redação, e variar o formato de um título é sempre missão ingrata, fechada em caracteres, padrões de clareza e posição na escalada. Mas inconsciente de editor é curiosamente infalível, pode reparar: o estudante universitário nunca é o traficante, o político condenado não vira criminoso, o homem que mata a mulher não é assassino – ela é que é vítima – e essa mulher indefesa nunca poderia ser poeta. Ela tem que precisar de ajuda para “superar as dificuldades”, mesmo que a ajuda venha, vejam só, da poesia feita por ela mesma.
Não é a escolha mais óbvia, evidentemente – que a coisa inanimada faça as vezes de herói faz mais sentido do que a outra opção. Mulheres criando versos? Expressando a própria realidade sob o próprio ponto de vista? Encontrando soluções e caminhos para encarar os próprios problemas? Ora, me poupe.
Mas editor, entenda: não é a poesia que vai salvar a mulher, é a mulher que vai salvar a poesia.